sábado, 23 de janeiro de 2010

Banquete de índio

Metade baré, metade branca, Dona Brazi rompe fronteiras e preconceitos, eleva o status da cozinha amazônica e conquista admiradores em todo o país.
Formigas manivaras torradas e a saúva com tucupi (centro) remetem à tradição alimentar de muitas etnias
Em São Gabriel da Cachoeira, maior cidade da Cabeça do Cachorro - nome pelo qual é conhecida a região fronteiriça do Brasil com a Venezuela e a Colômbia, no extremo noroeste do país -, quase ninguém a conhece pelo nome de batismo: Josefa Gonçalves de Andrade. Basta, porém, falar em Dona Brazi e - pronto! - todos sabem quem é essa cabocla simpática, que cozinha como poucos e fala habitualmente o nheengatu, língua criada pelos padres jesuítas e amplamente difundida por lá.
Acessível apenas por barco ou avião, São Gabriel da Cachoeira fica no alto Rio Negro, a 852 quilômetros de Manaus. A população local é de cerca de 40 mil pessoas, 90% das quais indígenas de 22 etnias, com tradições, costumes e línguas distintas. A 'ocupação branca' começou no século XVII, com os padres jesuítas que acorreram à Amazônia para catequizar os índios. Bem mais tarde, nos anos 1970, foi a vez de os nordestinos migrarem para a região, para trabalhar na construção de estradas ou na exploração de borracha.
Dona Brazi é filha de um desses migrantes com uma índia da etnia baré. Desde cedo, mostrou talento como cozinheira. O reconhecimento, no entanto, demorou. Certa vez, um prefeito pediu para ela desocupar uma barraca instalada em um galpão com teto de palha no centro da cidade, porque lá era lugar para vender 'comida de branco', e não beiju, manivara torrada, molho de tucupi com saúva, quinhampira (caldeirada de peixe) e chibé (caldo com farinha d'água), etc.
Temperos como chicória-do-pará, que tem a aparência da hortaliça e sabor mais próximo ao do coentro, ou caruru, uma erva silvestre que costuma ser servida com peixe moqueado, 'eram coisa de índio ou de gente pobre, não de brancos'. Tais alimentos continuam a ser ofertados aos domingos na cidade, quando mais de 50 feirantes de diversas etnias se reúnem para vender o que colheram e pescaram na semana. Dona Brazi sempre foi persistente. Passava o dia inteiro na roça, acordava às duas horas da manhã para cozinhar e levava tudo fresquinho para a feira. 'Quem não chegava cedo não comia', gaba-se.

Texto Janice Kiss Foto Rogério Assis; Fernanda Bernardino